sábado, 12 de abril de 2014

MEMÓRIAS IMEMORÁVEIS - PARTE VII

               MEMÓRIAS
  IMEMORÁVEIS
DE CERTO FUNCIONÁRIO
(ENTREGADOR)
DA
ÁGUA PURA
A SUCURSAL DO INFERNO
                                                               
                                                                                                                    PARTE VII 


O ÚLTIMO SUSPIRO

A minha vida é uma tristeza,
Nada acontece, para variar.
Eu sequer tenho a certeza
De que algo vai mudar.
E pra aumentar a frustração
Trancaram-me nessa prisão,
Sem chance de me soltar.

          Por Deus, o quê que eu fiz
          Para merecer tanto castigo?
          Eu nunca fui tão infeliz,
 E é por isso que eu digo:
 Nenhum sofrimento é nobre,
          Tudo só cai no “lombo” do pobre
 Desamparado e sem abrigo.

A vida não pode esperar,
Eu quero a minha “alforria”,
Para eu poder, então, viajar,
E só assim a minha alegria
Finalmente ela vai voltar,
Nunca mais vou me lembrar
De toda e qualquer agonia.

Vivo em busca da felicidade
E longe de qualquer tortura.
Minha ambição, na verdade,
Era ser gari da Prefeitura.
Mas para minha infelicidade,
Com tanto serviço nessa cidade,
Vim parar logo na Água Pura.

As escolhas que nós fazemos
Nem sempre dão bons resultados.
Às vezes, nem chance temos,
Só apenas de ser humilhados.
Até porque trabalhar com crente
Que é a pior espécie de gente,
Deixa o sujeito mais revoltado.

Não há palavras de consolo
E que me façam entender,
Sou pobre, mas não sou tolo,
E cego é quem não quer ver.
É muito fácil para um cidadão
Se esconder em uma religião,
Com uma Bíblia sempre a reler.

“- Com uma Bíblia na mão
E uma cara de débil mental,
Pregando a enganação
Da Igreja Universal.
Ou será que é outra igreja dessas?
Ah, não faz mal. Igreja de enganar
Otário é tudo igual!”. (Gabriel, O Pensador)

Crente rico é um hipócrita
Não acredita e nem confessa.
Crente pobre é um idiota
Que se engana com promessa.
Para viver nessa realidade
Cheia de ódio e de maldade,
Só o dinheiro é que interessa

Não sou nenhum mercenário,
Sou apenas um realista.
Já me fizeram de otário,
Tentaram tapar minha vista...
Lamento essa minha arrogância,
Mas de crente quero distância;
Estão fora da minha lista!

Voltando ao ponto inicial
Um emprego é uma conquista,
Ralando aqui só me dei mal
E eu que era tão otimista...
Agora é meter a firma no pau,
Descolar uma grana legal
E procurar um bom analista.

Mais uma vítima da Água Pura
E que ainda não recobrou o tom,
Testemunha viva dessa loucura
Das cansativas idas ao Leblon.
Um sobrevivente, herói e poeta,
Que decidiu cair fora na hora certa,
Pois ainda sabe o que é bom.

É natural que o cansaço
Tenha tomado conta de mim,
O meu corpo é só inchaço,
Um sofrimento que não tem fim.
Agora só restou-me o bagaço,
O selim arrancou meu cabaço
E vou levando a vida assim.

Foram mais de 33.000
As águas que eu entreguei,
Cada cliente, puta que pariu!
Velha chata, maluco, até gay.
Mas também muita gente boa
Inclusive, algumas “coroas”
Com as quais eu namorei.

Neste depósito da Água Pura
Baixa toda corja de gente: 
O nanico, de baixa estatura,
           Alto, forte e até deficiente.
           Sem falar nos tipos imundos:
Ladrão, traficante, vagabundo...
A escória está toda presente!

Tudo quanto é cafajeste,
Mas também muito coitado,
Reprovado em qualquer teste
Ou pela vida abandonado.
Gente que vive na sarjeta
E que vem atrás da gorjeta;
Às vezes sai decepcionado.

Eu levaria meu tempo todo
Falando deste lugar estranho,
Não quero aprofundar nesse lodo
Senão daqui a pouco eu apanho.
Mas quero apenas ressaltar,
A saúde vem em primeiro lugar;
Esse é o nosso maior ganho.

A minha única ligação
Com esta empresa fodida,
É por conta da situação
Desta loja estar quase falida.
E para aumentar o meu stress
Sequer pagam o FGTS,
Um atraso para a minha vida.

Ainda que eu quisesse
Já não dava mais para “ralar”.
Quem sente dor não esquece
E nem dá para ignorar.
É a coluna dolorida,
A saúde comprometida;
É o cúmulo do azar!

Um homem que nunca mente,
Às vezes, pode levar um tempão
Para provar que está doente
E sem a menor condição,
De atender imediatamente
À exigência de um cliente
E em seguida à do patrão.

Só quero agora me curar,
Dor nas costas não é moleza.
Nunca mais volto a trabalhar
E a enfrentar essa dureza.
Serviço bom para mim, talvez,
Só trabalhando metade do mês,
E não sofrendo nessa tristeza.

Estou pensando em me “encostar”,
Dar entrada na aposentadoria,
Tirar o meu tempo para viajar,
Esquecer de vez essa agonia.
Lá na Paraíba, eu posso apostar,
Nunca mais vou querer lembrar
Que fui entregador algum dia.


                              RIO, 01/NOVEMBRO/2006

                                                           Continua...

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