Crônica é uma
narração, segundo a ordem temporal. O termo é atribuído, por exemplo, aos
noticiários dos jornais, comentários literários ou científicos que preenchem
periodicamente as páginas de um jornal. Na maioria dos casos, é um texto curto
e narrado em primeira pessoa, ou seja, o próprio escritor está
"dialogando" com o leitor.
É o único gênero literário produzido
essencialmente para ser veiculado na imprensa, seja nas páginas de uma revista,
seja nas de um jornal. Quer dizer, ela é feita com uma finalidade utilitária e
pré-determinada: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a
mesma localização, criando-se assim, no transcurso dos dias ou das semanas, uma
familiaridade entre o escritor e aqueles que o lêem.
A crônica difere da
notícia e da reportagem porque, embora utilizando o jornal ou a revista como
meio de comunicação, não tem por finalidade principal
informar o destinatário, mas refletir sobre o acontecido. Desta
finalidade resulta que, neste tipo de texto, podemos ler a visão subjetiva do
cronista sobre o universo narrado. Assim, o foco narrativo situa-se
invariavelmente na 1ª pessoa.
Poeta do quotidiano, como
alguém chamou ao cronista dos nossos dias, apresenta um discurso que se move
entre a reportagem e a literatura, entre o oral e o literário, entre a narração
impessoal dos acontecimentos e a força da imaginação. Diálogo e monólogo;
diálogo com o leitor, monólogo com o sujeito da enunciação. A subjetividade
percorre todo o discurso.
A crônica não morre
depressa, como acontece com a notícia, mas morre, e aqui se afasta
irremediavelmente do texto literário, embora se vista, por vezes, das suas roupagens,
como a metáfora, a ambiguidade, a antítese, a conotação, etc. A sua estrutura
assemelha-se à de um conto, apresentando uma introdução, um desenvolvimento e
uma conclusão.
A Última Crônica - Fernando Sabino (12/10/1923 a 11/11/2004)
"A
caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao
balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me
assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta
busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas
recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da
convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao
episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer
nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples
espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a
cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança:
"assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem
assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem
uma crônica.
Ao fundo do botequim um
casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da
parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e
palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos,
laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à
mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de
curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a
instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se
preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o
dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se
para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe
limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a
aprovação do garçom. Este ouve concentrado, o pedido do homem e depois se
afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a
reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom
encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo
com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma
pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a
garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não
começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um
discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira
qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha
aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de
mim.
São três velinhas
brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E
enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a
um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força,
apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada,
cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra
você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a
guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos
sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura -
ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao
colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer
intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos
olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a
cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."
Uma das mais belas crônicas de todos os tempos. Uma leitura indispensável.
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