UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA
DEPARTAMENTO DE
LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E
INTERCULTURALIDADE
DISCIPLINA: Literatura Brasileira
do Nordeste
DOCENTE: (a) Geralda Medeiros e Elisa Mariana
Campina Grande,
Agosto/2014
DOCENTE: (a) Geralda Medeiros e Elisa Mariana
ARTIGO
PARA REVISTA: ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA OBRA TANTOS ANOS, DA ESCRITORA RACHEL DE
QUEIROZ
Trabalho elaborado como requisito de avaliação final
correspondente à disciplina Literatura brasileira do
Nordeste, ministrada pelos docentes do Mestrado
em Literatura e Interculturalidade, Geralda Medeiros
e Elisa Mariana.
correspondente à disciplina Literatura brasileira do
Nordeste, ministrada pelos docentes do Mestrado
em Literatura e Interculturalidade, Geralda Medeiros
e Elisa Mariana.
DISCENTE: Paulo Albino Vieira
Campina Grande,
Agosto/2014
ANÁLISE
CRÍTICA ACERCA DA OBRA TANTOS ANOS,
DA ESCRITORA RACHEL DE QUEIROZ
Paulo albino Vieira
Rachel de Queiroz e sua arte
inconfundível de escrever romances históricos do modernismo regionalista traz à
tona em seu livro de memórias, Tantos
Anos (escrito quase à revelia), os bastidores de sua vida pessoal e todo um
lado sertanejo que vivenciara até os últimos dias de sua vida, estruturando a
obra em 51 capítulos breves numa mistura
de relatos gravados, perfis, textos escritos e até algumas crônicas um tanto particulares.
Para tanto utilizara como personagens principais membros de sua própria família,
bem como as inúmeras amizades que soube conservar ao longo do tempo. Como
afirma o sociologista francês Maurice Halbwachs em sua obra A memória Coletiva, 2006, “O primeiro testemunho a que podemos recorrer
será sempre o nosso”.
A escritora Rachel de Queiroz
nasceu em Fortaleza, capital do Estado do Ceará, em 17 de novembro de 1910.
Filha de Daniel de Queiroz Lima e Clotilde Franklin de Queiroz, Rachel foi uma
pessoa bastante politizada e muito a frente de seu tempo, sendo, inclusive, a primeira
mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras, eleita para a cadeira nº
5, em 1977. Além de escritora e tradutora de livros da literatura universal,
foi também jornalista, romancista, cronista e teatróloga. Seu primeiro romance,
"O Quinze", ganhou o premio da Fundação Graça Aranha. Já o romance, "Memorial
de Maria Moura", foi transformado em minissérie para televisão e
apresentado em vários países. Rachel
de Queiroz faleceu em sua casa no Rio de Janeiro, de um ataque cardíaco, no dia
4 de novembro de 2003.
A obra Tantos Anos é um livro de memórias escrito a quatro mãos, por
Rachel e por sua irmã mais nova, Luiza de Queiroz. A
ideia anunciada ainda no início do livro é a de que o mesmo seria composto
necessariamente sob duas versões, a de Rachel e a de sua irmã, embora
enfatizando os mesmos acontecimentos, integrando-se e
complementando-se até o final. Ao narrarem suas memórias em conjunto, vão ao
mesmo tempo compondo e traçando uma espécie de auto-retrato, uma autobiografia
que busca nas vozes de outras personagens um contorno que acaba por delinear
suas afirmações. O resultado é o retrato de uma mulher forte e com grande
autonomia de pensamento.
Maurice Halbwachs (2006) procura investigar
se a memória individual diante da memória coletiva é também uma condição
necessária e suficiente da recordação e do reconhecimento das lembranças. Nessa
perspectiva, uma vez que Rachel alterna a escrita e o desenvolvimento de sua
obra em parceria com a irmã, Maria Luíza, procurando
remeter tanto para a longa duração que o relato recobre, como para o tempo de
espera em que esse livro foi aguardado, independente disto, se as suas
lembranças mais remotas tivessem sido suprimidas, e já não fossem mais
possíveis de ser reencontradas, é porque também há muito tempo a autora - aqui
como personagem central - já não fazia mais parte do grupo na memória da qual
ela se mantinha. A lembrança, como afirma Halbwachs é em ampla medida uma
reconstrução do passado com a ajuda de alguns elementos emprestados do presente.
A memória como concebemos, ainda segundo Maurice Halbwachs é uma dimensão eminentemente temporal, e
aqui ela se produz com o espaço. Para ele não existe uma história neutra; nela
a memória, enquanto uma categoria abertamente mais efetiva de relacionamento
com o passado, procura intervir e determinar em boa parte os seus caminhos.
Halbwachs enfatiza que a memória existe no plural, num constante embate entre
diferentes leituras do passado e as diferentes formas de “enquadrá-lo”.
As memórias de Rachel fazem parte daquele
tipo de narrativas memorialistas onde a figura da família tem um peso
preponderante. Todas as narrativas são profundamente pontuadas pelos constantes
deslocamentos, seja do Ceará, ou mais especificamente, da casa paterna,
passando por Itabuna, Maceió, São Paulo até o Rio de Janeiro, local onde
permaneceu por mais tempo. Mas o que chama atenção é a dedicação à terra e às
origens, algo que se manifesta na fala de Maria Luíza, a co-autora: “Mas, em
todos os que emigraram (os familiares), a mesma nostalgia do sertão agreste, o
permanente sonho de voltar – um dia! No sangue de todos eles, todos os Queiroz,
o visceral amor à terra, o que dela brota, o que nela vive”. Portanto, de
acordo com Halbwachs, quando se diz que a recordação de certas lembranças não
depende de nossa vontade, é porque a nossa vontade não é forte o suficiente.
Várias foram as biografias e
autobiografias, ou mesmo relatos pessoais que se intensificaram pelo Brasil e
no exterior, sobretudo a partir da década de 1980. Nesse contexto, o livro Tantos Anos das irmãs Queiroz pode ser
visto numa linha diferente de memórias. Pois, foi devido a insistência de Maria
Luiza que a irmã e consagrada escritora acabou concordando em contar as suas
memórias. Os relatos, como já foi dito, são constituídos de trechos ditados ou
escritos por Rachel, bem como reproduções de conversas gravadas, e acabam por
revelar a dupla assinatura, assim como a cumplicidade das duas na maioria das
histórias empregadas. Ficando, desta forma, um compromisso único com a
liberdade de espírito, de pensar e de afirmar as coisas, como assegura a voz
autorizada de Maria Luíza.
Segundo Ângela de Castro Gomes, organizadora da obra Escrita de Si, Escrita da História (2004),
nos últimos dez anos o Brasil tem vivido uma espécie de boom de publicações de caráter biográfico e autobiográfico,
tornando-se cada vez maior o interesse dos leitores por certo gênero de
escritos - uma escrita de si -, a qual abarca diários, correspondência, biografias e autobiografias, independentemente de serem memórias ou entrevista de história de vida,
por exemplo. Entretanto, nem só literatos escrevem, sobretudo, uma escrita de
si. De acordo com a autora, cartas, diários íntimos e memórias, entre outros,
sempre tiveram autores e leitores. Porém, nesta última década, no Brasil e no
mundo, ganharam um reconhecimento e uma visibilidade bem maior, tanto no
mercado editorial, quanto na academia.
Desde sempre Rachel de Queiroz dizia não
gostar do gênero “memórias literárias”, chegando até mesmo duvidar se seriam
realmente literárias. Segundo ela, esse tipo de texto serve mais ao culto
narcísico do próprio escritor, tendo como função expor a intimidade de forma
excessiva. Ao concordar em escrever suas memórias afirmou: “Prometo apenas não
mentir”.
Dessa forma, a intelectual acabou
presenteando seus leitores com uma obra única e riquíssima do ponto de vista
dos depoimentos e declarações, os quais pontuam praticamente em todos os relatos.
Pode ser lida ainda como uma espécie de crônica do
Brasil do século XX,
idealizada por alguém que
viveu intensamente o período,
principalmente político do país. Ao longo de sua trajetória brilhante, Rachel de Queiroz conviveu
com várias figuras
de destaque da cultura brasileira, de uma maneira geral, a exemplo de Manuel
Bandeira, Guimarães Rosa,
de Mário Pedrosa a
Mário de Andrade.
A literatura é reconhecida como fonte
significativa de análise do mundo social, e um livro sobre memórias na
literatura tem muitos modos de entrada possíveis. Como afirma Adeítalo Manoel
Pinho em sua obra, Perfeitas memórias:
Literatura, experiência e invenção (2011), “a memória é uma instância
cultural, cuja significação é capaz de articular duas áreas do conhecimento: O
local humano da lembrança no cérebro e o local social formado por um grupo de artefatos:
museus, histórias orais e escritas etc.” Segundo ele, este último local fora
criado como instrumento e técnica de aperfeiçoamento da memória, buscando-se
preservar um acervo da cultura.
Por outro lado, uma das questões fundamentais na obra
de Maurice Halbwachs, fervoroso discípulo de Durkheim, consiste na afirmação de
que a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, na
medida em que todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo. A
origem de várias ideias, reflexões, sentimentos, paixões que atribuímos a nós
são, na verdade, inspiradas pelo grupo. Segundo ele, “Haveria então, na base de
toda lembrança, o chamado a um estado de consciência puramente individual que -
para distingui-lo das percepções onde entram elementos do pensamento social -
admitiremos que se chame intuição sensível”.
São fatos intrínsecos como estes que permeiam toda a
obra Tantos Anos, através de diálogos
ricamente construídos e “costurados” com outros fatos isolados da vida da
autora, onde se sobressai ao máximo a objetividade de Rachel ao descrever suas
experiências, em contraponto à subjetividade da irmã Maria Luiza, que busca a
todo o momento legitimar os fatos narrados, pois, afinal, trata-se de
testemunha permanente da vida de sua irmã.
Para Halbwachs, o indivíduo que lembra é sempre um
indivíduo inserido e habitado por grupos de referência; a memória é sempre e
por regra construída em grupo, mas é também, sempre, um trabalho inerente do
sujeito. Constitue-se, portanto, como um trabalho de reconhecimento e
reconstrução que atualiza os “quadros sociais” nos quais as lembranças
permanecem e articulam-se entre si.
A lembrança
não se constrói sem a memória coletiva, sendo esta apoiada sobre o “passado
vivido”, o qual vem permitir a composição de uma narrativa sobre o passado do
sujeito de uma forma viva e natural, mais do que sobre o “passado apreendido
pela história escrita”, como dirá Halbwachs. O autor ainda aponta que a
lembrança histórica é entendida como o decurso de episódios marcantes na
história de um povo e consequentemente, de um país. O próprio termo “memória
histórica”, posto desta forma, seria uma tentativa de reunir questões opostas,
contudo, para buscar entender em que sentido a História se opõe à Memória. Para
Halbwachs, é preciso se ater à concepção de História por ele empregada.
Podemos dizer ainda, como Certeau (1982), que se a escrita da
história é a representação de uma ausência em um determinado espaço discursivo,
dessa forma, “o passado é a ficção do presente”. Embora não contradizendo por inteiro este
argumento e procurando trazer
isso agora para o campo das memórias, Tantos Anos é uma obra que reconstrói de maneira brilhante a
vida de Rachel
de Queiroz, mas sem enaltecer propriamente o ego de sua pessoa - e sem gerar
histórias fantasiosas ou especulativas -, algo de que ela soube se esquivar
muito bem, pois procurou destacar mais a família, a terra, a coletividade e o
país, de uma maneira geral. Através desses recortes de vida, podemos perceber a
mulher, a jornalista, a escritora, a intelectual que se sobrepôs numa época
ainda tão difícil de se falar em igualdade de direitos.
Analisando toda a obra de Rachel de Queiroz por uma
perspectiva de gênero, percebemos a importância e a sua dimensão dentro da
história da literatura brasileira. São poucas as escritoras como ela que
tiveram tanto êxito no cenário político e literário brasileiro do século XX,
uma mulher que rompeu barreiras e preconceitos através de sua vida, de seus
escritos e de suas personagens marcantes. A influência e a qualidade acentuada
de sua obra, aliadas à trajetória admirável de sua vida pública, fizeram da
carreira da autora cearense um ponto de partida para se projetar a inclusão da
mulher na esfera pública brasileira, como também sua profissionalização enquanto
escritora.
Ao concordar em escrever suas memórias, a escritora recusou as formas da memória heróica,
embora isso pudesse acarretar num baixo desempenho em seus relatos. Como já
fora dito, ela se comprometeu em “apenas não mentir”, trazendo a tona
informações nem sempre completas, legitimando assim inúmeras omissões e
recusando-se garantir a presença completa do conjunto de suas lembranças.
Corroborando com o teórico
Na obra Escrita
de Si, Escrita da História, Ângela de Castro Gomes diz ainda que “Os
registros de memória dos indivíduos modernos são de forma geral e por
definição, subjetivos, fragmentados e ordinários como suas vidas”, afirmando
que o valor dessas memórias, sobretudo enquanto documentação histórica é
identificado exatamente nessas características. Mas também em uma condição
decorrente de uma nova concepção de verdade, própria às sociedades
individualistas. Segundo Ângela, a vida individual tem valor e autonomia em
relação ao todo, e é dos indivíduos que nasce a organização social e não o
inverso.
Rachel de Queiroz foi uma mulher, durante toda sua
vida, dinâmica em todos os planos. Desde a infância viveu cercada de livros e
pôde compartilhar desde sempre suas experiências tanto na área social, política
e principalmente literária. Isso e muito mais é possível constatar na obra Tantos Anos, um livro de memórias que é
ao mesmo tempo uma fala e uma escuta, gerador de uma escrita dupla, em cumplicidade,
resultante do pacto legitimado pela dupla assinatura. As memórias ao mesmo
tempo são de sua irmã Maria Luíza que, em contraponto, narra fragmentos do
“romance familiar” por um viés bem mais afetivo.
A narrativa na voz de Rachel, por outro
lado, conta a sua trajetória de vida, no que tem de pessoal e de mais coletivo,
algo que se tece, se recorta e se confronta com a própria história política do
Brasil, em especial, da era Vargas até o ápice da ditadura militar aqui no
Brasil. Enquanto em Maria
Luíza sobressaem os relatos privados, num tom mais
emotivo-subjetivo, em Rachel as narrativas ganham projeção na esfera pública, reforçada
por um registro mais objetivo, menos sentimental. Sobressai desse livro de
memórias, mais uma vez, a figura de Rachel como uma grande narradora, uma
escritora que também foi Jornalista e que conhecia como ninguém a arte de
escrever bem, argumentando e amarrando fatos com extrema competência. Ao narrar
as suas memórias aos pedaços, vai compondo uma espécie de auto-retrato, uma
autobiografia bastante consciente do que vivenciara até então.
Em sua obra, Perfeitas memórias: Literatura, experiência e invenção, Pinho afirma
que a capacidade de recordar as coisas é que alimenta a capacidade de narrar: o
homem narra sempre o que viu ou o que viveu. A narrativa, portanto, é algo que se
faz no pretérito, indicando que “a narrativa se alimenta da experiência armazenada
pela memória ao longo do tempo.”
Narrar as experiências ou lembranças do
que foi visto, vivido, ouvido, sentido ou pensado é seguramente a melhor forma
de lembrar da vida, buscando as verdades contidas e sua função na existência
como um todo, sem se preocupar em transmitir ensinamentos nem em reproduzir
literalmente os fatos, compreendendo assim, a trajetória do escritor na
sociedade, sua verdade subjetiva, enquanto representação do pensamento
individual e coletivo dentro de um determinado contexto.
Contudo, Rachel
de Queiroz chegou aos 90 anos de idade
assegurando que não gostava de escrever, fazendo-o apenas para se sustentar.
Ela recorda que começou a escrever para jornais desde cedo, nunca mais parando
de produzir, embora considerasse bem pequeno o número de livros que publicara.
“Para mim, foram só cinco, (além de O Quinze, As Três Marias, Dôra,
Doralina, O Galo de Ouro e Memorial de Maria Moura), pois os outros eram
compilações de crônicas que fiz para a imprensa, sem muito prazer de escrever,
mas porque precisava sustentar-me”, recorda-se.
“Na verdade não gosto de escrever e se eu morrer agora, não vão encontrar nada
inédito na minha casa” [1].
Referências
bibliográficas
CERTEAU, Michel de, A Escrita da história / Michel de Certeau;
tradução de Maria de Lourdes Menezes; *revisão técnica [de] Arno Vogel. – Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
Escrita de si, escrita da história, / Organizadora Ângela de Castro Gomes. – Rio de
Janeiro : Editora FGV, 2004. 380p.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo:
Centauro, 2006.
História, memória,
literatura: O Testemunho na Era das
Catástrofes/ Márcio Seligmann-Silva (org.). – Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 2003
PINHO, Adeítalo Manoel, Perfeitas memórias: Literatura, experiência
e invenção / Adeítalo Manoel Pinho. Rio de Janeiro : 7Letras, 2011. 176p.
Um excelente artigo sobre essa obra da escritora Rachel de Queiroz, parabéns!
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