quarta-feira, 18 de novembro de 2015

ARTIGO PARA REVISTA: ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA OBRA TANTOS ANOS, DA ESCRITORA RACHEL DE QUEIROZ


UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA
DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E
INTERCULTURALIDADE
DISCIPLINA: Literatura Brasileira do Nordeste 
DOCENTE: (a) Geralda Medeiros e Elisa Mariana
 



ARTIGO PARA REVISTA: ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA OBRA TANTOS ANOS, DA ESCRITORA RACHEL DE QUEIROZ
 

    

                                                 Trabalho elaborado como requisito de avaliação final
                                                 correspondente à disciplina Literatura brasileira do 
                                                 Nordeste, ministrada pelos docentes do Mestrado 
                                                 em Literatura e Interculturalidade, Geralda Medeiros 
                                                 e Elisa Mariana.
                                                                                 DISCENTE: Paulo Albino Vieira





Campina Grande,
Agosto/2014 
 
 

ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA OBRA TANTOS ANOS, DA ESCRITORA RACHEL DE QUEIROZ

                                                                                   Paulo albino Vieira

Rachel de Queiroz e sua arte inconfundível de escrever romances históricos do modernismo regionalista traz à tona em seu livro de memórias, Tantos Anos (escrito quase à revelia), os bastidores de sua vida pessoal e todo um lado sertanejo que vivenciara até os últimos dias de sua vida, estruturando a obra em 51 capítulos breves numa mistura de relatos gravados, perfis, textos escritos e até algumas crônicas um tanto particulares. Para tanto utilizara como personagens principais membros de sua própria família, bem como as inúmeras amizades que soube conservar ao longo do tempo. Como afirma o sociologista francês Maurice Halbwachs em sua obra A memória Coletiva, 2006, “O primeiro testemunho a que podemos recorrer será sempre o nosso”.

A escritora Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza, capital do Estado do Ceará, em 17 de novembro de 1910. Filha de Daniel de Queiroz Lima e Clotilde Franklin de Queiroz, Rachel foi uma pessoa bastante politizada e muito a frente de seu tempo, sendo, inclusive, a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras, eleita para a cadeira nº 5, em 1977. Além de escritora e tradutora de livros da literatura universal, foi também jornalista, romancista, cronista e teatróloga. Seu primeiro romance, "O Quinze", ganhou o premio da Fundação Graça Aranha. Já o romance, "Memorial de Maria Moura", foi transformado em minissérie para televisão e apresentado em vários países. Rachel de Queiroz faleceu em sua casa no Rio de Janeiro, de um ataque cardíaco, no dia 4 de novembro de 2003.

A obra Tantos Anos é um livro de memórias escrito a quatro mãos, por Rachel e por sua irmã mais nova, Luiza de Queiroz. A ideia anunciada ainda no início do livro é a de que o mesmo seria composto necessariamente sob duas versões, a de Rachel e a de sua irmã, embora enfatizando os mesmos acontecimentos, integrando-se e complementando-se até o final. Ao narrarem suas memórias em conjunto, vão ao mesmo tempo compondo e traçando uma espécie de auto-retrato, uma autobiografia que busca nas vozes de outras personagens um contorno que acaba por delinear suas afirmações. O resultado é o retrato de uma mulher forte e com grande autonomia de pensamento.

Maurice Halbwachs (2006) procura investigar se a memória individual diante da memória coletiva é também uma condição necessária e suficiente da recordação e do reconhecimento das lembranças. Nessa perspectiva, uma vez que Rachel alterna a escrita e o desenvolvimento de sua obra em parceria com a irmã, Maria Luíza, procurando remeter tanto para a longa duração que o relato recobre, como para o tempo de espera em que esse livro foi aguardado, independente disto, se as suas lembranças mais remotas tivessem sido suprimidas, e já não fossem mais possíveis de ser reencontradas, é porque também há muito tempo a autora - aqui como personagem central - já não fazia mais parte do grupo na memória da qual ela se mantinha. A lembrança, como afirma Halbwachs é em ampla medida uma reconstrução do passado com a ajuda de alguns elementos emprestados do presente.

A memória como concebemos, ainda segundo Maurice Halbwachs é uma dimensão eminentemente temporal, e aqui ela se produz com o espaço. Para ele não existe uma história neutra; nela a memória, enquanto uma categoria abertamente mais efetiva de relacionamento com o passado, procura intervir e determinar em boa parte os seus caminhos. Halbwachs enfatiza que a memória existe no plural, num constante embate entre diferentes leituras do passado e as diferentes formas de “enquadrá-lo”.

As memórias de Rachel fazem parte daquele tipo de narrativas memorialistas onde a figura da família tem um peso preponderante. Todas as narrativas são profundamente pontuadas pelos constantes deslocamentos, seja do Ceará, ou mais especificamente, da casa paterna, passando por Itabuna, Maceió, São Paulo até o Rio de Janeiro, local onde permaneceu por mais tempo. Mas o que chama atenção é a dedicação à terra e às origens, algo que se manifesta na fala de Maria Luíza, a co-autora: “Mas, em todos os que emigraram (os familiares), a mesma nostalgia do sertão agreste, o permanente sonho de voltar – um dia! No sangue de todos eles, todos os Queiroz, o visceral amor à terra, o que dela brota, o que nela vive”. Portanto, de acordo com Halbwachs, quando se diz que a recordação de certas lembranças não depende de nossa vontade, é porque a nossa vontade não é forte o suficiente.

Várias foram as biografias e autobiografias, ou mesmo relatos pessoais que se intensificaram pelo Brasil e no exterior, sobretudo a partir da década de 1980. Nesse contexto, o livro Tantos Anos das irmãs Queiroz pode ser visto numa linha diferente de memórias. Pois, foi devido a insistência de Maria Luiza que a irmã e consagrada escritora acabou concordando em contar as suas memórias. Os relatos, como já foi dito, são constituídos de trechos ditados ou escritos por Rachel, bem como reproduções de conversas gravadas, e acabam por revelar a dupla assinatura, assim como a cumplicidade das duas na maioria das histórias empregadas. Ficando, desta forma, um compromisso único com a liberdade de espírito, de pensar e de afirmar as coisas, como assegura a voz autorizada de Maria Luíza.

          Segundo Ângela de Castro Gomes, organizadora da obra Escrita de Si, Escrita da História (2004), nos últimos dez anos o Brasil tem vivido uma espécie de boom de publicações de caráter biográfico e autobiográfico, tornando-se cada vez maior o interesse dos leitores por certo gênero de escritos - uma escrita de si -, a qual abarca diários, correspondência, biografias e autobiografias, independentemente de serem memórias ou entrevista de história de vida, por exemplo. Entretanto, nem só literatos escrevem, sobretudo, uma escrita de si. De acordo com a autora, cartas, diários íntimos e memórias, entre outros, sempre tiveram autores e leitores. Porém, nesta última década, no Brasil e no mundo, ganharam um reconhecimento e uma visibilidade bem maior, tanto no mercado editorial, quanto na academia.

Desde sempre Rachel de Queiroz dizia não gostar do gênero “memórias literárias”, chegando até mesmo duvidar se seriam realmente literárias. Segundo ela, esse tipo de texto serve mais ao culto narcísico do próprio escritor, tendo como função expor a intimidade de forma excessiva. Ao concordar em escrever suas memórias afirmou: “Prometo apenas não mentir”.

Dessa forma, a intelectual acabou presenteando seus leitores com uma obra única e riquíssima do ponto de vista dos depoimentos e declarações, os quais pontuam praticamente em todos os relatos. Pode ser lida ainda como uma espécie de crônica do Brasil do século XX, idealizada por alguém que viveu intensamente o período, principalmente político do país. Ao longo de sua trajetória brilhante, Rachel de Queiroz conviveu com várias figuras de destaque da cultura brasileira, de uma maneira geral, a exemplo de Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, de Mário Pedrosa a Mário de Andrade.

A literatura é reconhecida como fonte significativa de análise do mundo social, e um livro sobre memórias na literatura tem muitos modos de entrada possíveis. Como afirma Adeítalo Manoel Pinho em sua obra, Perfeitas memórias: Literatura, experiência e invenção (2011), “a memória é uma instância cultural, cuja significação é capaz de articular duas áreas do conhecimento: O local humano da lembrança no cérebro e o local social formado por um grupo de artefatos: museus, histórias orais e escritas etc.” Segundo ele, este último local fora criado como instrumento e técnica de aperfeiçoamento da memória, buscando-se preservar um acervo da cultura.

Por outro lado, uma das questões fundamentais na obra de Maurice Halbwachs, fervoroso discípulo de Durkheim, consiste na afirmação de que a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, na medida em que todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo. A origem de várias ideias, reflexões, sentimentos, paixões que atribuímos a nós são, na verdade, inspiradas pelo grupo. Segundo ele, “Haveria então, na base de toda lembrança, o chamado a um estado de consciência puramente individual que - para distingui-lo das percepções onde entram elementos do pensamento social - admitiremos que se chame intuição sensível”.
São fatos intrínsecos como estes que permeiam toda a obra Tantos Anos, através de diálogos ricamente construídos e “costurados” com outros fatos isolados da vida da autora, onde se sobressai ao máximo a objetividade de Rachel ao descrever suas experiências, em contraponto à subjetividade da irmã Maria Luiza, que busca a todo o momento legitimar os fatos narrados, pois, afinal, trata-se de testemunha permanente da vida de sua irmã.
Para Halbwachs, o indivíduo que lembra é sempre um indivíduo inserido e habitado por grupos de referência; a memória é sempre e por regra construída em grupo, mas é também, sempre, um trabalho inerente do sujeito. Constitue-se, portanto, como um trabalho de reconhecimento e reconstrução que atualiza os “quadros sociais” nos quais as lembranças permanecem e articulam-se entre si.
 A lembrança não se constrói sem a memória coletiva, sendo esta apoiada sobre o “passado vivido”, o qual vem permitir a composição de uma narrativa sobre o passado do sujeito de uma forma viva e natural, mais do que sobre o “passado apreendido pela história escrita”, como dirá Halbwachs. O autor ainda aponta que a lembrança histórica é entendida como o decurso de episódios marcantes na história de um povo e consequentemente, de um país. O próprio termo “memória histórica”, posto desta forma, seria uma tentativa de reunir questões opostas, contudo, para buscar entender em que sentido a História se opõe à Memória. Para Halbwachs, é preciso se ater à concepção de História por ele empregada.
Podemos dizer ainda, como Certeau (1982), que se a escrita da história é a representação de uma ausência em um determinado espaço discursivo, dessa forma, “o passado é a ficção do presente”. Embora não contradizendo por inteiro este argumento e procurando trazer isso agora para o campo das memórias, Tantos Anos é uma obra que reconstrói de maneira brilhante a vida de Rachel de Queiroz, mas sem enaltecer propriamente o ego de sua pessoa - e sem gerar histórias fantasiosas ou especulativas -, algo de que ela soube se esquivar muito bem, pois procurou destacar mais a família, a terra, a coletividade e o país, de uma maneira geral. Através desses recortes de vida, podemos perceber a mulher, a jornalista, a escritora, a intelectual que se sobrepôs numa época ainda tão difícil de se falar em igualdade de direitos.
Analisando toda a obra de Rachel de Queiroz por uma perspectiva de gênero, percebemos a importância e a sua dimensão dentro da história da literatura brasileira. São poucas as escritoras como ela que tiveram tanto êxito no cenário político e literário brasileiro do século XX, uma mulher que rompeu barreiras e preconceitos através de sua vida, de seus escritos e de suas personagens marcantes. A influência e a qualidade acentuada de sua obra, aliadas à trajetória admirável de sua vida pública, fizeram da carreira da autora cearense um ponto de partida para se projetar a inclusão da mulher na esfera pública brasileira, como também sua profissionalização enquanto escritora.
Ao concordar em escrever suas memórias, a escritora recusou as formas da memória heróica, embora isso pudesse acarretar num baixo desempenho em seus relatos. Como já fora dito, ela se comprometeu em “apenas não mentir”, trazendo a tona informações nem sempre completas, legitimando assim inúmeras omissões e recusando-se garantir a presença completa do conjunto de suas lembranças. Corroborando com o teórico Márcio Seligmann Silva (2003), que irá dizer que a memória não existe sem a sua resistência, e que só existe ao lado do esquecimento, um complementando e alimentando o outro, onde um é o fundo sobre o qual o outro se inscreve.
Na obra Escrita de Si, Escrita da História, Ângela de Castro Gomes diz ainda que “Os registros de memória dos indivíduos modernos são de forma geral e por definição, subjetivos, fragmentados e ordinários como suas vidas”, afirmando que o valor dessas memórias, sobretudo enquanto documentação histórica é identificado exatamente nessas características. Mas também em uma condição decorrente de uma nova concepção de verdade, própria às sociedades individualistas. Segundo Ângela, a vida individual tem valor e autonomia em relação ao todo, e é dos indivíduos que nasce a organização social e não o inverso.
Rachel de Queiroz foi uma mulher, durante toda sua vida, dinâmica em todos os planos. Desde a infância viveu cercada de livros e pôde compartilhar desde sempre suas experiências tanto na área social, política e principalmente literária. Isso e muito mais é possível constatar na obra Tantos Anos, um livro de memórias que é ao mesmo tempo uma fala e uma escuta, gerador de uma escrita dupla, em cumplicidade, resultante do pacto legitimado pela dupla assinatura. As memórias ao mesmo tempo são de sua irmã Maria Luíza que, em contraponto, narra fragmentos do “romance familiar” por um viés bem mais afetivo.
A narrativa na voz de Rachel, por outro lado, conta a sua trajetória de vida, no que tem de pessoal e de mais coletivo, algo que se tece, se recorta e se confronta com a própria história política do Brasil, em especial, da era Vargas até o ápice da ditadura militar aqui no Brasil. Enquanto em Maria Luíza sobressaem os relatos privados, num tom mais emotivo-subjetivo, em Rachel as narrativas ganham projeção na esfera pública, reforçada por um registro mais objetivo, menos sentimental. Sobressai desse livro de memórias, mais uma vez, a figura de Rachel como uma grande narradora, uma escritora que também foi Jornalista e que conhecia como ninguém a arte de escrever bem, argumentando e amarrando fatos com extrema competência. Ao narrar as suas memórias aos pedaços, vai compondo uma espécie de auto-retrato, uma autobiografia bastante consciente do que vivenciara até então.

Em sua obra, Perfeitas memórias: Literatura, experiência e invenção, Pinho afirma que a capacidade de recordar as coisas é que alimenta a capacidade de narrar: o homem narra sempre o que viu ou o que viveu. A narrativa, portanto, é algo que se faz no pretérito, indicando que “a narrativa se alimenta da experiência armazenada pela memória ao longo do tempo.”

Narrar as experiências ou lembranças do que foi visto, vivido, ouvido, sentido ou pensado é seguramente a melhor forma de lembrar da vida, buscando as verdades contidas e sua função na existência como um todo, sem se preocupar em transmitir ensinamentos nem em reproduzir literalmente os fatos, compreendendo assim, a trajetória do escritor na sociedade, sua verdade subjetiva, enquanto representação do pensamento individual e coletivo dentro de um determinado contexto.

Contudo, Rachel de Queiroz chegou aos 90 anos de idade assegurando que não gostava de escrever, fazendo-o apenas para se sustentar. Ela recorda que começou a escrever para jornais desde cedo, nunca mais parando de produzir, embora considerasse bem pequeno o número de livros que publicara. “Para mim, foram só cinco, (além de O Quinze, As Três Marias, Dôra, Doralina, O Galo de Ouro e Memorial de Maria Moura), pois os outros eram compilações de crônicas que fiz para a imprensa, sem muito prazer de escrever, mas porque precisava sustentar-me”, recorda-se. “Na verdade não gosto de escrever e se eu morrer agora, não vão encontrar nada inédito na minha casa” [1].







Referências bibliográficas


CERTEAU, Michel de, A Escrita da história / Michel de Certeau; tradução de Maria de Lourdes Menezes; *revisão técnica [de] Arno Vogel. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

Escrita de si, escrita da história, / Organizadora Ângela de Castro Gomes. – Rio de Janeiro : Editora FGV, 2004. 380p.


HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo:
Centauro, 2006.

História, memória, literatura: O Testemunho na Era das Catástrofes/ Márcio Seligmann-Silva (org.). – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003


PINHO, Adeítalo Manoel, Perfeitas memórias: Literatura, experiência e invenção / Adeítalo Manoel Pinho. Rio de Janeiro : 7Letras, 2011. 176p.
 



Um comentário:

  1. Um excelente artigo sobre essa obra da escritora Rachel de Queiroz, parabéns!

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